Vou publicar, em
série, dois artigos extraídos do “Conversa Afiada”, (vale a pena frequentá-lo
regularmente), e que cuidam do “instituto” da “Delação Premiada”.
Neste primeiro
episódio, veremos que é bem antigo o tal do instituto, como bem antiga, também,
é sua causa para fins bem opostos dos que deveria ser a precípua finalidade.
Pois, conforme Emiliano José e Patrícia Valim, (vejam ao fim do artigo,
informações sobre os autores), esse deletério uso já ocorrera desde os fins do século
XVIII.
“Delação
premiada” na Conjuração Baiana de 1798
Emiliano José e Patrícia Valim*
A Conjuração Baiana de 1798, um dos
episódios mais importantes de nossa história, pode iluminar o presente, como
sempre o passado faz. O setor dominante local, que participou da primeira fase
do movimento, diante da descoberta da revolta, soube dar um duplo twist carpado
nos setores médio e baixo daquela sociedade e, para não ser incriminado por
crime de sedição, passou a colaborar com as investigações: formularam as
principais denúncias, ajudaram a premiar os delatores e entregaram seus
escravos à justiça.
Desde lá, e quaisquer semelhanças com
pessoas vivas ou mortas será mera coincidência, ou não, a delação premiada era
mecanismo utilizado, apesar das reformas do Direito Moderno após o Consulado
Pombalino. Desde então, entregar a cabeça dos de baixo foi prática corriqueira
das classes dominantes para manter as suas intactas. Não pensem estejamos
exagerando, vítimas de quaisquer tentações panfletárias. Que se mate a cobra e
se mostre a cobra morta.
Abertas as devassas para a investigação
dos autores dos dez boletins sediciosos afixados em prédios públicos,
descobertos na manhã de 12 de agosto de 1798, e dos participantes da revolta,
os poderosos recuaram, pois recai sobre eles a acusação de reuniões para se
organizar a revolta. Apressaram-se em entregar seus próprios escravos à
justiça, pretendendo que eles corroborassem suas denúncias contra quatro homens
negros, pobres e pardos, com o objetivo de reafirmar que eram leais súditos da
Coroa, e o quanto estavam dispostos a servir à lei e à ordem.
Para a entrega dos escravos, contaram com
a prestimosa ajuda do homem mais poderoso da Bahia, secretário de Estado e
Governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albuquerque. Este, saiu doido atrás
de outros poderosos, incitando-os a entregar seus negros. Com isso, ele e os
demais livrariam a pele. Não só da acusação de participar do levante,
como também das denúncias de enriquecimento ilícito, contrabando e
principalmente de atuação duvidosa à frente dos órgãos da administração local.
Albuquerque era o mais proeminente dos
entregadores de escravos. Proprietário do Solar do Unhão, de plantações de
tabaco e de engenhos e açúcar. Dinheiro não lhe faltava. Poder político,
também não. Secretário de Estado e Governo do Brasil – cargo cujas vitaliciedade
e hereditariedade foram compradas por sua família. Era ainda Intendente da
Marinha e Armazéns Gerais, Vedor Geral do Exército, Provedor e Ouvidor da
Alfândega da Bahia, e deputado da Junta da Real Fazenda.
José Pires de Carvalho e Albuquerque era o
exemplo acabado do acumpliciamento entre o público e o privado. Proprietário de
quatro escravos entregues. Foi essa “pronta-entrega de escravos”, surgida nos
autos, que acabou por revelar a participação de oito homens poderosos na
conspiração, todos eles fazendo a pronta entrega de suas propriedades, diga-se:
de seus escravos. O restante, intacto.
Livraram-se, com a entrega dos escravos,
de serem acusados do crime de sedição e de práticas pouco ortodoxas com a coisa
pública. As acusações de “ausência de limpeza de mãos” por parte desses
senhores e de utilização da máquina pública para enriquecimento ilícito eram
tantas e tão variadas que o cronista Luís dos Santos Vilhena os qualificou de
“Corporação dos Enteados”, dadas as relações promíscuas mantidas com a Justiça
e a administração pública em benefício próprio.
Mas naquela sociedade colonial e
escravista, não era apenas a “Corporação dos Enteados” que era constantemente
denunciada. Dois dos desembargadores do Tribunal de Relação da Bahia designados
para as investigações da Conjuração Baiana de 1798 também foram constantemente
denunciados à Coroa por prática de contrabando e excesso de poder sem que
houvesse qualquer providência: Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto e Manuel
de Magalhães Pinto e Avellar de Barbedo. Não interessava à Coroa portuguesa
punir os agentes que ocupavam o principal orgão que garantia a direção política
da dominação portuguesa no Brasil.
O mulato Joaquim José de Santa Anna foi um
dos denunciantes do encontro no Campo do Dique do Desterro, marcado para a
noite de 25 de agosto de 1798, que deveria ser o marco do início do levante. A
delação dele foi recompensada: condecorado com a Ordem de Cristo, promovido a
sargento-mor do Terceiro Regimento de Milícias da Bahia, tornou-se arrendatário
de um pedaço de terra de José Pires de Carvalho e Albuquerque, em cuja casa
aconteceram várias reuniões para se discutir questões da França revolucionária
e a organização da revolta.
A “Corporação dos Enteados” participou da
organização do levante porque não obstante tivesse enorme poder, estava
insatisfeita com o anúncio de medidas por parte da Coroa, pretendendo
recrudescer o sistema de dominação colonial ao dinamizar as finanças com o fim
dos monopólios dos contratos e arrematações, agilizar o sistema da Justiça,
combater a corrupção, a promiscuidade entre cargos públicos e objetivos
privados, e queria ainda criar um sistema de tributação progressiva e justa.
Tais medidas visavam conter qualquer
tentativa de repetição no Brasil de uma revolta escrava como a de São Domingos
ou algo semelhante ao que ocorria na França revolucionária. Eram medidas
reformistas, que atacavam frontalmente os privilégios da Corporação dos
Enteados. Percebendo que esse grupo não estava de brincadeira, a Coroa recuou,
atendeu as demandas políticas e econômicas dos enteados - prejudicando,
inclusive, um grupo poderoso de capitalistas portugueses. O medo da revolução
uniu as duas pontas – a Coroa com medo de uma convulsão social e os Enteados,
que criam ser revolucionárias reformas que diminuiriam seus privilégios.
Depois de mais de um ano de investigações
duvidosas, com direito a “delações premiadas” e ausência de provas contra os
acusados, os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia, constantemente
denunciados por “ausência de limpeza de mãos”, concluíram que João de Deus do
Nascimento era o autor dos boletins manuscritos e o “cabeça” da projetada
revolução. Liderava Lucas Dantas Amorim, Manuel Faustino e Luiz Gonzaga das
Virgens e Veiga. Quatro homens livres, pobres e mulatos. Enforcados, seus
corpos esquartejados, partes expostas por toda a cidade durante vários dias, na
manhã de 8 de novembro de 1799, na Praça da Piedade, em Salvador.
Os poderosos da Corporação dos Enteados
com os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia e o próprio governador
da Capitania da Bahia, d. Fernando José de Portugal e Castro, se juntaram,
encontraram uma saída, fizeram um cruel efeito-demonstração para sinalizar a
não aceitação de qualquer nova experiência como aquela: quando homens livres,
pobres e negros/mulatos fizessem política, seriam condenados à pena
última.
Nesse conluio, deixaram de lado vários
participantes da revolta, sobretudo os poderosos. Não era pouca gente
envolvida. Das informações dos boletins manuscritos, 513 pessoas eram de
corporações militares, 187 oficiais. Noticia-se, ainda, a presença de 13 homens
graduados em letras, 20 cidadãos comuns, oito do comércio, oito frades bentos,
14 franciscanos, 48 clérigos e oito familiares do Santo Ofício, entre outros.
Só quatro pagaram o pato; pobres, negros/mulatos.
Ter muita gente armada mostrava a
disposição de luta dos participantes da revolta, e não por acaso uma das
reivindicações fundamentais era o aumento do soldo para 200 réis diários e
isonomia nos critérios de ascensão na hierarquia militar. A presença de
religiosos revela a sensibilidade das corporações eclesiásticas para com as
reivindicações populares.
O trágico fim dos quatro enforcados na
Praça da Piedade revela uma tradição brasileira: o de encontrar bodes expiatórios
nas crises, o de mexer com tudo para deixar como está. E revela também como age
o Judiciário ao longo da história: apesar do formalismo com as várias reformas
modernizadoras do Direito, a politização da justiça é o recurso para a
manutenção do status quo.
Se algum exemplo tem de ser dado, se é
necessário a qualquer custo embargar qualquer ascensão das classes populares à
vida política, se é preciso estancar qualquer arroubo reformista, se é
essencial sinalizar para que experiências democráticas bem-sucedidas não se
repitam, é preciso escolher a quem matar, sinalizar que está agindo, que está
punindo, e não importa que se punam apenas alguns, os escolhidos para serem
esquartejados.
Ao fazer o sangue correr, tenta-se evitar
qualquer outra conjuração, e ali era um levante que atacava a escravidão e o
domínio colonial – para uns, apenas como argumento para manter privilégios;
para outros, pra valer. Daquele episódio, nos recordamos, pelo positivo, do
exemplo de luta dos envolvidos e dos quatro mártires; pelo negativo, da
corrupção da administração, da politização da justiça e da tradição
acomodatícia das classes dominantes. E acrescente-se: malgrado o Império tenha
sido o que foi, a Coroa portuguesa perde o cetro poucos anos depois.
Nós proclamamos:
O medo não pode vencer a esperança!
Animai-vos, povo!
Emiliano José é jornalista, professor da
Universidade Federal da Bahia (aposentado), doutor em Comunicação e Cultura
Contemporâneas pela mesma
Universidade , autor de mais de uma
dezena de livros, o último dos quais “A intervenção da imprensa na política
brasileira: 1954-2014”, editado pela Editora Fundação Perseu Abramo.
Patrícia Valim é professora de História do
Brasil Colonial/UFBA e autora da Dissertação de Mestrado em História Social “Da
Sedição dos Mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma memória
histórica”, USP/2007; e da tese de doutorado “Corporação dos enteados: tensão,
contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798”, USP/2013.