Não
bastassem as sucessivas demonstrações indisfarçáveis de afinação entre os
golpistas de sempre e os neo-golpistas no sentido da desqualificação, a todo
modo, do governo legitimamente eleito e constituído para a sua derrubada por
renúncia (lembram?), suicídio (lembram?), ou mesmo simples TOMADA ("na tora") do comando da
nação (lembram?), que de há muito acontecem, leio por agora que um GENERAL, um
senhor General (parece-me que de Brigada), atentem bem! Escreveu um artigo, numa revista
militar, convocando “os civis” a pedirem intervenção deles (militares), em
plena véspera de aniversário da “redentora”, para que eles (os saudosos de 64) possam agir e fazer seu renascimento. Não se enganem, são forças que não podem ser
desprezadas, esquecidas. Estão latentes e ávidas por fazer sair da aparente
hibernação o monstro que aterorizou a nação por mais de duas décadas. E para abrir bem os olhos daqueles que disto necessitam, transcrevo a
seguir texto do cientista político Antonio Lassance, extraído do Blog de Luís Nassif.
qua, 12/03/2014 - 09:46 - Atualizado em 12/03/2014 - 10:37
Sugerido por Webster Franklin
Da Carta Maior
Antonio Lassance
Há
50 anos, o Brasil foi capturado pela mais longa, mais cruel e mais tacanha
ditadura de sua história.
Meio
século é mais que suficiente tanto para aprendermos quanto para esquecermos
muitas coisas.
É
preciso escolher de que lado estamos diante dessas duas opções.
1ª.
LIÇÃO: AQUELA FOI A PIOR DE TODAS AS DITADURAS
No
período republicano, o Brasil teve duas ditaduras propriamente ditas. Além da
de 1964, a de 1937, imposta por Getúlio Vargas e por ele apelidada de
"Estado Novo".
A
ditadura de Vargas durou oito anos (1937 a 1945). A ditadura que começou em
1964 durou 21 anos.
Vargas
e seu regime fizeram prender, torturar e desaparecer muita gente, mas não na
escala do que ocorreu a partir de 1964.
Os
torturadores do Estado Novo eram cruéis. Mas nada se compara em intensidade e
em profissionalismo sádico ao que se vê nos relatos colhidos pelo projeto
"Brasil, nunca mais" ou, mais recentemente, pela Comissão da Verdade.
Em
qualquer aspecto, a ditadura de 1964 não tem paralelo.
2ª.
lição: QUALIFICAR A DITADURA SÓ COMO “MILITAR” ESCAMOTEIA O PAPEL DOS CIVIS
Foram
os militares que deram o golpe, que indicaram os presidentes, que comandaram o
aparato repressivo e deram as ordens de caçar e exterminar grupos de esquerda.
Mas
a ditadura não teria se instalado não fosse o apoio civil e também a ajuda
externa do governo Kennedy.
O
golpismo não tinha só tanques e fuzis. Tinha partidos direitosos; veículos de
imprensa agressivos; empresários com ódio de sindicatos; fazendeiros armados
contra Ligas Camponesas, religiosos anticomunistas. Todos tão ou mais golpistas
que os militares.
Sem
os civis, os militares não iriam longe. A ditadura foi tão civil quanto
militar. Tinha seu partido da ordem; sua imprensa dócil e colaboradora; seus
empresários prediletos; seus cardeais a perdoar pecados.
3ª.
LIÇÃO: NÃO HOUVE REVOLUÇÃO, E SIM REAÇÃO, GOLPE E DITADURA
Ernesto
Geisel (presidente de 1974 a 1979) disse a seu jornalista preferido e
confidente, Elio Gaspari, em 1981:
"O
que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções fazem-se por uma ideia,
em favor de uma doutrina. Nós simplesmente fizemos um movimento para derrubar
João Goulart. Foi um movimento contra, e não por alguma coisa. Era contra a
subversão, contra a corrupção. Em primeiro lugar, nem a subversão nem a
corrupção acabam. Você pode reprimi-las, mas não as destruirá. Era algo
destinado a corrigir, não a construir algo novo, e isso não é revolução".
Quase
ninguém usa mais o eufemismo “revolução” para se referir à ditadura, à exceção
de alguns remanescentes da velha guarda golpista, que provavelmente ainda
dormem de botinas, e alguns desavisados, como o presidenciável Aécio
Neves, que recentemente cometeu a gafe de chamar a ditadura de “revolução” (foi
durante o 57º Congresso Estadual de Municípios de São Paulo, em abril de 2013).
Questionado
depois por um jornal, deu uma aula sobre o uso criterioso de conceitos:
“Ditadura, revolução, como quiserem”.
A
ditadura foi uma reação ao governo do presidente João Goulart e à sua proposta
de reformas de base: reforma agrária, política e fiscal.
4ª.
LIÇÃO: A CORRUPÇÃO PROSPEROU MUITO NA DITADURA
Ditaduras
são regimes corruptos por excelência. Corrupção acobertada pelo autoritarismo,
pela ausência de mecanismos de controle, pela regra de que as autoridades podem
tudo.
A
ditadura foi pródiga em escândalos de corrupção, como o da Capemi, justo a Caixa
de Pecúlio dos Militares. As grandes obras, ditas faraônicas, eram o paraíso do
superfaturamento.
Também
ficaram célebres o caso Lutfalla (envolvendo o ex-governador Paulo Maluf,
aliás, ele próprio uma criação da ditadura) e o escândalo da Mandioca.
5ª.
LIÇÃO: A DITADURA ACABOU, MAS AINDA TEM MUITO ENTULHO AUTORITÁRIO POR AÍ
O
Brasil ainda tem uma polícia militar que segue regulamentos criados pela
ditadura.
A
Polícia Civil de S. Paulo, em outubro de 2013, enquadrou na Lei de Segurança
Nacional (LSN) duas pessoas presas durante protestos.
A
tortura ainda é uma realidade presente, basta lembrar o caso Amarildo.
Os
corredores do Congresso ainda mostram um desfile de filhotes da ditadura -
deputados e senadores que foram da velha Arena (Aliança Renovadora Nacional,
que apoiava o regime).
6ª.
LIÇÃO: BANALIZAR A DITADURA É ACENDER UMA VELA EM SUA HOMENAGEM
Há
duas formas de se banalizar a ditadura. Uma é achar que ela não foi lá tão dura
assim. A outra é chamar de ditadura a tudo o que se vê de errado pela frente.
O
primeiro caso tem seu pior exemplo no uso do termo "ditabranda" no
editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro de 2009.
Para
a Folha de S. Paulo, a última ditadura brasileira foi uma branda
(“ditabranda”), se comparada à da Argentina e à chilena.
A
ditadura brasileira de fato foi diferente da chilena e da argentina, mas nunca
foi “branda”, como defende o jornal acusado de ter emprestado carros à Operação
Bandeirantes, que caçava militantes de grupos de esquerda para serem presos e
torturados.
Como
disse a cientista política Maria Victoria Benevides, que infâmia é essa de
chamar de brando um regime que prendeu, torturou, estuprou e assassinou?
A
outra maneira de se banalizar a ditadura e de lhe render homenagens é não
reconhecer as diferenças entre aquele regime e a atual democracia. Para alguns,
qualquer coisa agora parece ditadura.
A
proposta de lei antiterrorismo foi considerada uma recaída ditatorial do regime
dos “comissários petistas” e mais dura que a LSN de 1969. Só que, para ser mais
dura que a LSN de 1969, a proposta que tramita no Congresso deveria prever a
prisão perpétua e a pena de morte.
O
diplomata brasileiro que contrabandeou o senador boliviano Roger Pinto Molina
para o Brasil comparou as condições da embaixada do Brasil na Bolívia à do
Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa
Interna (DOI-CODI), a casa de tortura da ditadura.
Para
se parecer com o DOI-CODI, a Embaixada brasileira em La Paz deveria estar
aparelhada com pau de arara, latões para afogamento, cadeira do dragão (tipo de
cadeira elétrica), palmatória etc.
Banalizar
a ditadura é como acender uma vela de aniversário em sua homenagem.
7ª.
LIÇÃO: JÁ PASSOU DA HORA DE PARAR COM AS HOMENAGENS OFICIAIS DE COMEMORAÇÃO DO
GOLPE
Por
muitos e muitos anos, os comandantes militares fizeram discursos no dia 31 de
março em comemoração (isso mesmo) à “Revolução” de 1964.
A
provocação oficial, em plena democracia, levou um cala-a-boca em 2011, primeiro
ano da presidência Dilma. Neste mesmo ano também foi instituída a Comissão da
Verdade.
A
referência ao 31 de março foi inventada para evitar que a data de comemoração
do golpe fosse o 1º. de abril – Dia da Mentira.
A
justificativa é que, no dia 31, o general Olympio Mourão Filho, comandante da
4ª Região Militar, em Minas Gerais, começou a movimentar suas tropas em direção
ao Rio de Janeiro.
Se
é assim, a Independência do Brasil doravante deve ser comemorada no dia 14 de
agosto, que foi a data em que o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se
deslocar do Rio de Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
A
palavra golpe tem esse nome por indicar a deposição de um governante do poder.
No dia 1º. de abril, João Goulart, que estava no Rio de Janeiro, chegou a
retornar para Brasília. Em seguida, foi para o Rio Grande do Sul e, depois,
exilou-se no Uruguai mas só em 4/4/1964. Que presidente é deposto e viaja
para a capital um dia depois do golpe?
O
Almanaque da Folha é um dos tantos que insistem na desinformação:
“31.mar.64
— O presidente da República, João Goulart, é deposto pelo golpe militar”.
Entende-se. Afinal, trata-se do pessoal da ditabranda.
O
que continua incompreensível é o livro “Os presidentes e a República”, editado
pelo Arquivo Nacional, sob a chancela do Ministério da Justiça, trazer ainda a
seguinte frase:
“Em
31 de março de 1964, o comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de
Fora, Minas Gerais, iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de
Janeiro. A despeito de algumas tentativas de resistência, o presidente Goulart
reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o destituiu”.
De
novo, o conto da Carochinha do 31 de março.
Ainda
mais incompreensível é o livro colocar as juntas militares de 1930 e de 1969 na
lista dos presidentes da República.
A
lista (errada) é reproduzida na própria página da Presidência da República como
informação sobre os presidentes do Brasil.
Nem
os membros das juntas esperavam tanto. A junta governativa de 1930 assinava
seus atos riscando a expressão “Presidente da República”.
No
caso da junta de 1969, o livro do Arquivo Nacional diz (p. 145) que o Ato
Institucional nº. 12 (AI-12) "dava posse à junta militar" composta
pelos ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ledo engano.
O
AI-12, textualmente: “Confere aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e
da Aeronáutica Militar as funções exercidas pelo Presidente da República,
Marechal Arthur da Costa e Silva, enquanto durar sua enfermidade”.
Oficialmente, o presidente continuava sendo Costa e Silva.
Há
outro problema. Uma lei da física, o famoso princípio da impenetrabilidade da
matéria, diz que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço
ao mesmo tempo – que dirá três corpos.
Não
há como três chefes militares ocuparem o mesmo cargo de presidente da
República. Que república no mundo tem três presidentes ao mesmo tempo?
O
que os membros da Junta de 1969 fizeram foi exercer as funções do presidente,
ou seja, tomar o controle do governo. O AI-14/1969 declarou o cargo
oficialmente vago, quando a enfermidade de Costa e Silva mostrou-se
irreversível.
Os
três comandantes militares jamais imaginaram que um dia seriam listados em um
capítulo à parte no panteão dos presidentes. A Junta ficaria certamente
satisfeita com a homenagem honrosa e, definitivamente, imerecida.
Que
história, afinal, estamos contando?
Uma
história que ainda não faz sentido.
Uma
história cujas lições ainda nos resta aprender.
(*)
Antonio Lassance é cientista político.