quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

UMA CRÔNICA DOS ANOS SESSENTA

Alheando-me momentaneamente à atual conjuntura política, obrigado a uma pausa para reflexão diante dos últimos acontecimentos, especialmente do fato da morte do cinegrafista que cobria uma dessas manifestações que grassam em nossas cidades, publico a crônica a seguir que remonta aos saudosos, apesar de tudo, anos sessenta.   
A FESTA DE ANIVERSÁRIO DE CHARLES
Lá pelos idos dos anos sessenta, o bairro da Liberdade, assim como toda a Cidade era humanamente habitável. O “Duque de Caxias” (colégio) era desprovido do horrível muro que o faz parecer-se agora a um presídio. Ainda havia o abrigo dos bondes. Os bondes, ah! Os bondes ainda trafegavam, disputando espaço com os carros outros. Bem próximo ao abrigo ficava a escola e a residência de Charles. Naquele abrigo, um português, “seu” Manoel, explorava um ponto comercial. Charles era um dos integrantes da gangue, (nada a ver com as atuais "irmandades" do mal), na qual militavam Vadinho, alvaiade, negro que só ele, retinto!; Álvaro, karatê, apaixonado pela luta marcial; Manoel, diabo. Ah, este aprontava demais!; convinha-lhe muito bem o apelido. Miro, preto; Paulo, nagô, ou Paulo Capoeira, ou... eram tantos os apelidos; Bené, o bito, bito; Tampa (sabe? Não faço ideia de seu real nome). Este merece um capítulo à parte. Tampa foi o moleque mais completo que conheci em toda a minha vida. Tudo da molequeira, da malandragem ele fazia e fazia muito bem. Jogava bola. (O cara dava bico em bola de couro. Hoje em dia, não há mais necessidade de se usar a expressão adjetiva de couro. Até porque as bolas, ao que parece, não são mais feitas de couro e dava bico com o pé descalço! (como se dizia na época, na paleta). Jogava bola de gude, era tiro! Empinava arraia, cortava tudo quanto era arraia adversária. Jogava pauzinho, ganhava todas, dominó... Fumante inveterado; possuía, no entanto, um fôlego invejável, tanto que pegava areia com a boca no fundo do Cais de Dez Metros, em Água de Meninos. Após sofrer um acidente de carro nunca mais foi o mesmo, tendo falecido ainda muito jovem).
Dizia eu que a turma era formada por estes tantos e alguns outros, itinerantes, e Elísio, queró. Este é, talvez, o protagonista principal desta história.
Bem, Charles, filho de uma professora, branca, com um negro americano, ao que me parece, marinheiro em infindáveis viagens (nenhum de nós conheceu o dito cujo). Desta maneira, nosso amigo desfrutava de uma vida remediada: sua mãe, professora dirigia sua escola particular. Seu pai deveria enviar polpuda mesada. Ele próprio era funcionário municipal. Para dizer bem da sua condição, foi ele a primeira pessoa no bairro a possuir uma lambreta. Para quem não sabe, lambreta é o que hoje em dia se chama por bizz. Pois bem, peguei uma carona com ele para a cidade, prá nunca mais. Foi uma viagem de horror, da Liberdade até a “cidade” – cidade quer dizer, o Terreiro de Jesus, o hoje centro histórico, como já bem traduziu Gilberto Gil -, o cara ultrapassava tudo quanto era veículo que estivesse à sua frente, em desabalada carreira. Por causa disto, tomei pavor de garupa de motocicleta e assemelhados.
Mas, foi num dia de festa aniversário de Charles que tudo aconteceu. A gangue fazia-se presente e rolava o clima natural de festa. Mas a bebida já demorava a sair e alguns impacientes começaram a reclamar e a procurar maneira de contornar à privação de bebida e eis que alguém volta os olhos e depara-se com um litro de Bacardi. “Faz ombro arma” dele e convoca os demais a se dirigirem ao bar. Ali chegando, compra-se uma coca-cola, que é misturada ao líquido surrupiado: de pronto, vê-se uma mistura heterogênea – sabe, aquele característico aspecto de, por exemplo, água com óleo? - nos copos. Paulo, nagô, usando dos seus conhecimentos físico-químicos, sentenciou: “coca-cola não se dá com Bacardi”. E ai é que o nosso Elísio “queró” entra na história. Foi o primeiro, o mais afoito a emborcar o drink, cuja composição foi feita de coca-cola com querosene, que ingenuamente substituía o Bacardi. Dai em diante, Elísio passou a ser chamado de Elísio “queró”, uma corrompida alcunha, embora amigável originada da palavra querosene.