segunda-feira, 31 de outubro de 2016

QUEM É BENEFICIÁRIO DE “Delação Premiada”? (1)


 Vou publicar, em série, dois artigos extraídos do “Conversa Afiada”, (vale a pena frequentá-lo regularmente), e que cuidam do “instituto” da “Delação Premiada”. 
Neste primeiro episódio, veremos que é bem antigo o tal do instituto, como bem antiga, também, é sua causa para fins bem opostos dos que deveria ser a precípua finalidade. Pois, conforme Emiliano José e Patrícia Valim, (vejam ao fim do artigo, informações sobre os autores), esse deletério uso já ocorrera desde os fins do século XVIII.
   
“Delação premiada” na Conjuração Baiana de 1798
Emiliano José e Patrícia Valim*
A Conjuração Baiana de 1798, um dos episódios mais importantes de nossa história, pode iluminar o presente, como sempre o passado faz. O setor dominante local, que participou da primeira fase do movimento, diante da descoberta da revolta, soube dar um duplo twist carpado nos setores médio e baixo daquela sociedade e, para não ser incriminado por crime de sedição, passou a colaborar com as investigações: formularam as principais denúncias, ajudaram a premiar os delatores e entregaram seus escravos à justiça. 
Desde lá, e quaisquer semelhanças com pessoas vivas ou mortas será mera coincidência, ou não, a delação premiada era mecanismo utilizado, apesar das reformas do Direito Moderno após o Consulado Pombalino. Desde então, entregar a cabeça dos de baixo foi prática corriqueira das classes dominantes para manter as suas intactas. Não pensem estejamos exagerando, vítimas de quaisquer tentações panfletárias. Que se mate a cobra e se mostre a cobra morta.
Abertas as devassas para a investigação dos autores dos dez boletins sediciosos afixados em prédios públicos, descobertos na manhã de 12 de agosto de 1798, e dos participantes da revolta, os poderosos recuaram, pois recai sobre eles a acusação de reuniões para se organizar a revolta. Apressaram-se em entregar seus próprios escravos à justiça, pretendendo que eles corroborassem suas denúncias contra quatro homens negros, pobres e pardos, com o objetivo de reafirmar que eram leais súditos da Coroa, e o quanto estavam dispostos a servir à lei e à ordem.
Para a entrega dos escravos, contaram com a prestimosa ajuda do homem mais poderoso da Bahia, secretário de Estado e Governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albuquerque. Este, saiu doido atrás de outros poderosos, incitando-os a entregar seus negros. Com isso, ele e os demais livrariam a pele.  Não só da acusação de participar do levante, como também das denúncias de enriquecimento ilícito, contrabando e principalmente de atuação duvidosa à frente dos órgãos da administração local.
Albuquerque era o mais proeminente dos entregadores de escravos. Proprietário do Solar do Unhão, de plantações de tabaco e de engenhos e açúcar.  Dinheiro não lhe faltava. Poder político, também não. Secretário de Estado e Governo do Brasil – cargo cujas vitaliciedade e hereditariedade foram compradas por sua família. Era ainda Intendente da Marinha e Armazéns Gerais, Vedor Geral do Exército, Provedor e Ouvidor da Alfândega da Bahia, e deputado da Junta da Real Fazenda.
José Pires de Carvalho e Albuquerque era o exemplo acabado do acumpliciamento entre o público e o privado. Proprietário de quatro escravos entregues. Foi essa “pronta-entrega de escravos”, surgida nos autos, que acabou por revelar a participação de oito homens poderosos na conspiração, todos eles fazendo a pronta entrega de suas propriedades, diga-se: de seus escravos. O restante, intacto.
Livraram-se, com a entrega dos escravos, de serem acusados do crime de sedição e de práticas pouco ortodoxas com a coisa pública.  As acusações de “ausência de limpeza de mãos” por parte desses senhores e de utilização da máquina pública para enriquecimento ilícito eram tantas e tão variadas que o cronista Luís dos Santos Vilhena os qualificou de “Corporação dos Enteados”, dadas as relações promíscuas mantidas com a Justiça e a administração pública em benefício próprio.
Mas naquela sociedade colonial e escravista, não era apenas a “Corporação dos Enteados” que era constantemente denunciada. Dois dos desembargadores do Tribunal de Relação da Bahia designados para as investigações da Conjuração Baiana de 1798 também foram constantemente denunciados à Coroa por prática de contrabando e excesso de poder sem que houvesse qualquer providência: Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto e Manuel de Magalhães Pinto e Avellar de Barbedo. Não interessava à Coroa portuguesa punir os agentes que ocupavam o principal orgão que garantia a direção política da dominação portuguesa no Brasil.
O mulato Joaquim José de Santa Anna foi um dos denunciantes do encontro no Campo do Dique do Desterro, marcado para a noite de 25 de agosto de 1798, que deveria ser o marco do início do levante. A delação dele foi recompensada: condecorado com a Ordem de Cristo, promovido a sargento-mor do Terceiro Regimento de Milícias da Bahia, tornou-se arrendatário de um pedaço de terra de José Pires de Carvalho e Albuquerque, em cuja casa aconteceram várias reuniões para se discutir questões da França revolucionária e a organização da revolta.
A “Corporação dos Enteados” participou da organização do levante porque não obstante tivesse enorme poder, estava insatisfeita com o anúncio de medidas por parte da Coroa, pretendendo recrudescer o sistema de dominação colonial ao dinamizar as finanças com o fim dos monopólios dos contratos e arrematações, agilizar o sistema da Justiça, combater a corrupção, a promiscuidade entre cargos públicos e objetivos privados, e queria ainda criar um sistema de tributação progressiva e justa.
Tais medidas visavam conter qualquer tentativa de repetição no Brasil de uma revolta escrava como a de São Domingos ou algo semelhante ao que ocorria na França revolucionária. Eram medidas reformistas, que atacavam frontalmente os privilégios da Corporação dos Enteados. Percebendo que esse grupo não estava de brincadeira, a Coroa recuou, atendeu as demandas políticas e econômicas dos enteados - prejudicando, inclusive, um grupo poderoso de capitalistas portugueses. O medo da revolução uniu as duas pontas – a Coroa com medo de uma convulsão social e os Enteados, que criam ser revolucionárias reformas que diminuiriam seus privilégios.
Depois de mais de um ano de investigações duvidosas, com direito a “delações premiadas” e ausência de provas contra os acusados, os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia, constantemente denunciados por “ausência de limpeza de mãos”, concluíram que João de Deus do Nascimento era o autor dos boletins manuscritos e o “cabeça” da projetada revolução. Liderava Lucas Dantas Amorim, Manuel Faustino e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Quatro homens livres, pobres e mulatos. Enforcados, seus corpos esquartejados, partes expostas por toda a cidade durante vários dias, na manhã de 8 de novembro de 1799, na Praça da Piedade, em Salvador.
Os poderosos da Corporação dos Enteados com os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia e o próprio governador da Capitania da Bahia, d. Fernando José de Portugal e Castro, se juntaram, encontraram uma saída, fizeram um cruel efeito-demonstração para sinalizar a não aceitação de qualquer nova experiência como aquela: quando homens livres, pobres e negros/mulatos fizessem política, seriam condenados à pena última.  
Nesse conluio, deixaram de lado vários participantes da revolta, sobretudo os poderosos. Não era pouca gente envolvida. Das informações dos boletins manuscritos, 513 pessoas eram de corporações militares, 187 oficiais. Noticia-se, ainda, a presença de 13 homens graduados em letras, 20 cidadãos comuns, oito do comércio, oito frades bentos, 14 franciscanos, 48 clérigos e oito familiares do Santo Ofício, entre outros. Só quatro pagaram o pato; pobres, negros/mulatos.
Ter muita gente armada mostrava a disposição de luta dos participantes da revolta, e não por acaso uma das reivindicações fundamentais era o aumento do soldo para 200 réis diários e isonomia nos critérios de ascensão na hierarquia militar. A presença de religiosos revela a sensibilidade das corporações eclesiásticas para com as reivindicações populares.
O trágico fim dos quatro enforcados na Praça da Piedade revela uma tradição brasileira: o de encontrar bodes expiatórios nas crises, o de mexer com tudo para deixar como está. E revela também como age o Judiciário ao longo da história: apesar do formalismo com as várias reformas modernizadoras do Direito, a politização da justiça é o recurso para a manutenção do status quo.
Se algum exemplo tem de ser dado, se é necessário a qualquer custo embargar qualquer ascensão das classes populares à vida política, se é preciso estancar qualquer arroubo reformista, se é essencial sinalizar para que experiências democráticas bem-sucedidas não se repitam, é preciso escolher a quem matar, sinalizar que está agindo, que está punindo, e não importa que se punam apenas alguns, os escolhidos para serem esquartejados.
Ao fazer o sangue correr, tenta-se evitar qualquer outra conjuração, e ali era um levante que atacava a escravidão e o domínio colonial – para uns, apenas como argumento para manter privilégios; para outros, pra valer. Daquele episódio, nos recordamos, pelo positivo, do exemplo de luta dos envolvidos e dos quatro mártires; pelo negativo, da corrupção da administração, da politização da justiça e da tradição acomodatícia das classes dominantes. E acrescente-se: malgrado o Império tenha sido o que foi, a Coroa portuguesa perde o cetro poucos anos depois.
Nós proclamamos:
O medo não pode vencer a esperança!
Animai-vos, povo!
Emiliano José é jornalista, professor da Universidade Federal da Bahia (aposentado), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela mesma Universidade        , autor de mais de uma dezena de livros, o último dos quais “A intervenção da imprensa na política brasileira: 1954-2014”, editado pela Editora Fundação Perseu Abramo.

Patrícia Valim é professora de História do Brasil Colonial/UFBA e autora da Dissertação de Mestrado em História Social “Da Sedição dos Mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma memória histórica”, USP/2007; e da tese de doutorado “Corporação dos enteados: tensão, contestação e negociação política na Conjuração Baiana de 1798”, USP/2013.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

“HISTÓRICO DEPOIMENTO DE UM PRISIONEIRO”

O título foi “tomado” do Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim, que sintetiza muito bem “a prisão” de Lula. Sim, Lula já está preso há algum tempo! Desprovido de seu mais elementar direito que é o da ampla defesa e do direito a um julgamento imparcial. Perseguido, “vasculhado”, humilhado, enxovalhado e a pretensão maior de seus algozes é enterrá-lo vivo! Enterrar junto com ele o sonho de um país mais justo; de uma nação soberana, dona de sua própria riqueza; de um país com voz, dentre as grandes nações; de um país sem fome!

“Em mais de 40 anos de atuação pública, minha vida pessoal foi permanentemente vasculhada - pelos órgãos de segurança, pelos adversários políticos, pela imprensa. Por lutar pela liberdade de organização dos trabalhadores, cheguei a ser preso, condenado como subversivo pela infame Lei de Segurança Nacional da ditadura. Mas jamais encontraram um ato desonesto de minha parte. 

Sei o que fiz antes, durante e depois de ter sido presidente. Nunca fiz nada ilegal, nada que pudesse manchar a minha história. Governei o Brasil com seriedade e dedicação, porque sabia que um trabalhador não podia falhar na Presidência. As falsas acusações que me lançaram não visavam exatamente a minha pessoa, mas o projeto político que sempre representei: de um Brasil mais justo, com oportunidades para todos. 

Às vésperas de completar 71 anos, vejo meu nome no centro de uma verdadeira caçada judicial. Devassaram minhas contas pessoais, as de minha esposa e de meus filhos; grampearam meus telefonemas e divulgaram o conteúdo; invadiram minha casa e conduziram-me à força para depor, sem motivo razoável e sem base legal. Estão à procura de um crime, para me acusar, mas não encontraram e nem vão encontrar. 

Desde que essa caçada começou, na campanha presidencial de 2014, percorro os caminhos da Justiça sem abrir mão de minha agenda. Continuo viajando pelo país, ao encontro dos sindicatos, dos movimentos sociais, dos partidos, para debater e defender o projeto de transformação do Brasil. Não parei para me lamentar e nem desisti da luta por igualdade e justiça social. 

Nestes encontros renovo minha fé no povo brasileiro e no futuro do país. Constato que está viva na memória de nossa gente cada conquista alcançada nos governos do PT: o Bolsa Família, o Luz Para Todos, o Minha Casa, Minha Vida, o novo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), o Programa de Aquisição de Alimentos, a valorização dos salários - em conjunto, proporcionaram a maior ascensão social de todos os tempos. 

Nossa gente não esquecerá dos milhões de jovens pobres e negros que tiveram acesso ao ensino superior. Vai resistir aos retrocessos porque o Brasil quer mais, e não menos direitos. 

Não posso me calar, porém, diante dos abusos cometidos por agentes do Estado que usam a lei como instrumento de perseguição política. Basta observar a reta final das eleições municipais para constatar a caçada ao PT: a aceitação de uma denúncia contra mim, cinco dias depois de apresentada, e a prisão de dois ex-ministros de meu governo foram episódios espetaculosos que certamente interferiram no resultado do pleito. 

Jamais pratiquei, autorizei ou me beneficiei de atos ilícitos na Petrobras ou em qualquer outro setor do governo. Desde a campanha eleitoral de 2014, trabalha-se a narrativa de ser o PT não mais partido, mas uma "organização criminosa", e eu o chefe dessa organização. Essa ideia foi martelada sem descanso por manchetes, capas de revista, rádio e televisão. Precisa ser provada à força, já que "não há fatos, mas convicções". 

Não descarto que meus acusadores acreditem nessa tese maliciosa, talvez julgando os demais por seu próprio código moral. Mas salta aos olhos até mesmo a desproporção entre os bilionários desvios investigados e o que apontam como suposto butim do "chefe", evidenciando a falácia do enredo. 

Percebo, também, uma perigosa ignorância de agentes da lei quanto ao funcionamento do governo e das instituições. Cheguei a essa conclusão nos depoimentos que prestei a delegados e promotores que não sabiam como funciona um governo de coalizão, como tramita uma medida provisória, como se procede numa licitação, como se dá a análise e aprovação, colegiada e técnica, de financiamentos em um banco público, como o BNDES. 

De resto, nesses depoimentos, nada se perguntou de objetivo sobre as hipóteses da acusação. Tenho mesmo a impressão de que não passaram de ritos burocráticos vazios, para cumprir etapas e atender às formalidades do processo. Definitivamente, não serviram ao exercício concreto do direito de defesa. 

Passados dois anos de operações, sempre vazadas com estardalhaço, não conseguiram encontrar nada capaz de vincular meu nome aos desvios investigados. Nenhum centavo não declarado em minhas contas, nenhuma empresa de fachada, nenhuma conta secreta. 

Há 20 anos moro no mesmo apartamento em São Bernardo. Entre as dezenas de réus delatores, nenhum disse que tratou de algo ilegal ou desonesto comigo, a despeito da insistência dos agentes públicos para que o façam, até mesmo como condição para obter benefícios. 

A leviandade, a desproporção e a falta de base legal das denúncias surpreendem e causam indignação, bem como a sofreguidão com que são processadas em juízo. Não mais se importam com fatos, provas, normas do processo. Denunciam e processam por mera convicção - é grave que as instâncias superiores e os órgãos de controle funcional não tomem providências contra os abusos. 

Acusam-me, por exemplo, de ter ganho ilicitamente um apartamento que nunca me pertenceu - e não pertenceu pela simples razão de que não quis comprá-lo quando me foi oferecida a oportunidade, nem mesmo depois das reformas que, obviamente, seriam acrescentadas ao preço. Como é impossível demonstrar que a propriedade seria minha, pois nunca foi, acusam-me então de ocultá-la, num enredo surreal. 

Acusam-me de corrupção por ter proferido palestras para empresas investigadas na Operação Lava Jato. Como posso ser acusado de corrupção, se não sou mais agente público desde 2011, quando comecei a dar palestras? E que relação pode haver entre os desvios da Petrobras e as apresentações, todas documentadas, que fiz para 42 empresas e organizações de diversos setores, não apenas as cinco investigadas, cobrando preço fixo e recolhendo impostos? 

Meus acusadores sabem que não roubei, não fui corrompido nem tentei obstruir a Justiça, mas não podem admitir. Não podem recuar depois do massacre que promoveram na mídia. Tornaram-se prisioneiros das mentiras que criaram, na maioria das vezes a partir de reportagens facciosas e mal apuradas. Estão condenados a condenar e devem avaliar que, se não me prenderem, serão eles os desmoralizados perante a opinião pública. 

Tento compreender esta caçada como parte da disputa política, muito embora seja um método repugnante de luta. Não é o Lula que pretendem condenar: é o projeto político que represento junto com milhões de brasileiros. Na tentativa de destruir uma corrente de pensamento, estão destruindo os fundamentos da democracia no Brasil. 

É necessário frisar que nós, do PT, sempre apoiamos a investigação, o julgamento e a punição de quem desvia dinheiro do povo. Não é uma afirmação retórica: nós combatemos a corrupção na prática. 

Ninguém atuou tanto para criar mecanismos de transparência e controle de verbas públicas, para fortalecer a Polícia Federal, a Receita e o Ministério Público, para aprovar no Congresso leis mais eficazes contra a corrupção e o crime organizado. Isso é reconhecido até mesmo pelos procuradores que nos acusam. 

Tenho a consciência tranquila e o reconhecimento do povo. Confio que cedo ou tarde a Justiça e a verdade prevalecerão, nem que seja nos livros de história. O que me preocupa, e a todos os democratas, são as contínuas violações ao Estado de Direito. É a sombra do estado de exceção que vem se erguendo sobre o país. 

LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA”