Vai uma crônica reeditada, para espairecer.
Estávamos, num certo dia, como
costumamos de vez em quando fazer, e de dia, (que no popular quer
dizer, durante o dia), a papear sobre diversos assuntos, quando se levantou a
tese do fim da boemia.
A tese deixou-me embaraçado e
pensativo, por que seu fim? O questionamento do meu interlocutor pareceu-me
mais uma preocupação de ordem particular, uma coisa bem pessoal; afinal ele,
como nós outros daquela confraria, já atravessamos o cabo da boa esperança, o
estreito de Ormuz (nada a ver com trânsito de grandes navios petroleiros que
abastecem, principalmente, os mercados norte-americano e europeu), e outros
obstáculos mais. Até que eu concordaria se, como já disse, levarmos
simplesmente para o plano pessoal, o particular. Mas Boemia (é com maiúscula
mesmo!), é, tal qual é a prostituição, no que respeita à profissão, a mais
antiga e eterna parceira da manifestação humana da arte, do lazer, do
entretenimento. Sem a boemia, não teriam existido os(as) literatos(as), os(as)
grandes artistas gráficos(as), os músicos, os compositores - vou deixar de usar
os (as), pois já deixei claro minha intenção de não discriminar as mulheres,
afinal, para nós homens, que me desculpem os gays, é a chama do fogo
ardente de uma paixão: mulher, paixão... e, com isto, está criada a boemia.
Agora, querendo finalizar, ou sair deste devaneio, deste gostoso retrocesso
cronológico, volto a dizer, Boemia é a mais antiga forma de manifestação
cultural e de entretenimento do homem (e da mulher também, alguma questão?);
afinal, desde que há inscrições ruprestres, alguma forma de fermentado e
outras cositas más, deve existir a Boemia.
Bem, voltemos ao nosso tempo e nossa
realidade. Como havia entendido logo, logo, o nosso amigo quis referir-se a
nós, à nossa contemporaneidade. Desta maneira, não há que se contestar coisa
alguma, o fim da Boemia, para nós, é fato. Pô, também, meu Rei, a
eternindade existe para o homem, enquanto instituição humana. Para nós, simples
mortais, assim como quase tudo, (digo isto para não melindrar os que acreditam
na vida depois da morte), tem fim; afinal, originamos de uma centelha, chegamos
ao auge de uma grande e duradoura, embora finita, chama que, em determinado
instante, entra num processo de dissipação, somente esta verdade já seria
bastante para explicar a constatação do nosso amigo. Mas há fatores outros, bem
contemporâneos para nos desestimular, nos desencorajar, para nos atemorizar,
para nos afugentar, para afugentar o nosso espírito notívago (e aí mora a
essência do questionamento do meu interlocutor: vida noturna, a noite é criança.). O ar
provinciano, doméstico que respirávamos na Salvador dos 60-70¹s e, quem sabe,
até os 80¹s, não mais existe. Transitávamos por aquelas vielas, becos,
ladeiras, de todo o centro histórico, pela Cidade Baixa: Comércio, Bonfim,
Ribeira, com a mais da desavergonhada tranquilidade; entrávamos e saíamos de
bar em bar, como se extensão fosse de propriedade nossa: o feijão de Alaíde, o
feijão de Vital, os inferninhos, o charriot (hoje, o plano
inclinado), a Rua Chile, Avenida Sete (elas com configurações bem diferentes
das de agora)...as barracas de praias - faziam-se devaneios até as altas horas-
e elas foram derrubadas! (a troco de que?); a Barraca de Da. Sildefina, (atrás
do C. Português); a Barraca de Nogueira, em Itapuã. Que é do Clube Português e
seu baile a Yemanjá?; do velho Caneco? (Nos seus áureos tempos, somente
servia chopp, [nada de cerveja em garrafa ou, pior, em lata] e bem
gelado; bigode ao gosto do frequês); o feijão do Quatro Rodas (prá
aqueles que não sabem, quatro rodas vem de um restaurante instalado numa velha kombi
ou num caminhão); os bailes de carnavais nos clubes sociais (ao que parece
somente subsistiram a Associação Atlética (parcialmente) e o Iate Clube (mas
quem podia ou pode acessar aquela intransponível fortaleza da elite baiana -
fiquemos somente neste termo. (As barracas de praia teriam invadido terreno da
União, da Marinha, mas o Iate Clube, não!, assim como um portentoso
hotel no Rio Vermelho, construído sobre as pedras do lindo mar da Bahia) e, o
pior de tudo, a grande vilã, a violência urbana. Sim, dirão, mas sempre
houve violência, sempre se roubou, sempre se matou, contudo a intensidade e
frequência com que se assalta, se mata, se infringe; com que se banaliza o
homicídio, a extinção de uma vida humana é incomparável com qualquer época
anterior.
Amigo, a materialização da Boemia
acabou para nós e, assim como, dizem, o Espírito é eterno, o nosso espírito
boêmio ainda vive, vivinho da silva, dentro de nós.
Vivamos com ele na maneira e no tempo em que nos permitirem, sem que seja preciso pedir, com súplica, "regresso", sem precisar pedir "inscrição", como fez um boêmio em sua volta à boemia.