Ainda assustado e indignado com a
iniciativa escancarada de incitação ao golpismo feito por um General da ativa
em órgão porta-voz de militares, (sem que soubesse ter havido qualquer reação
da parte da autoridade constituída responsável. Imaginemos se na vigência da
ditadura, um militar qualquer, quanto mais uma alta patente, ousasse criticar o
“regime”, ah, Lascava-se! Como muitos), dou continuidade à minha intenção de
ficar atento e atenado para o que vem ocorrendo e poderá ocorrer nesses
próximos dias que antecedem o aniversário do golpe militar de 1964 e para que
possa repercutir manifestações que façam relembrar o que foi e quais as
consequências para o país do referido golpe. Assim, transcrevo um artigo de
Marcelo Rubens Paiva, escritor e filho de um deputado morto nos porões da
“redentora”.
Sugerido por Claudio.SJ
Do Estadão
Marcelo Rubens Paiva
“Como é que a gente faz
hoje quando entra num táxi e o motorista diz que tempos bons eram os da
ditadura?”, me perguntou o amigo Nirlando Beirão.
Diz que:
No tempo da ditadura, a gente
não podia escrever sobre o tempo da ditadura, nem qualificar o regime como uma
ditadura. No tempo da ditadura, ao invés de uma análise crítica sobre a
ditadura, digo regime, neste espaço teria um poema de Camões ou uma receita de
bolo, pois seria censurada.
Todo mundo que era contra a
ditadura era comunista. Todos se tornaram suspeitos, subversivos em potencial.
E muitos que, em 1964, conspiraram com os militares, na missão de impedir que
comunistas tomassem o poder, e o Brasil se transformasse numa diabólica ditadura
do proletário, perceberam a manobra e foram depois acusados de ligações com
comunistas.
No primeiro ato da ditadura,
o AI-1 (Ato Institucional Número 1), baixado pela Junta Militar em 9 de abril
de 1964, cassaram os opositores dos comunistas, os trabalhistas: João Goulart,
Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, parte da bancada do PTB, partido fundado por
Getúlio Vargas, como Almino Afonso e meu pai, Jânio Quadros, Miguel Arraes, o
deputado católico Plínio de Arruda Sampaio, o economista Celso Furtado, o jornalista
Samuel Weiner, até o presidente da Petrobras, marechal Osvino Alves. Nenhum
deles era comunista.
Entre outros cassados,
estavam membros da corporação que mais perseguições sofreu durante a ditadura:
os próprios militares, como o general-de-brigada Assis Brasil, o chefe do
Gabinete Militar, Luís Tavares da Cunha Melo, e os almirantes Cândido de Aragão
e Araújo Suzano. Milhares de oficiais foram expulsos das Forças Armadas durante
a ditadura.
Bem antes ditadura, o PCB
(Partido Comunista do Brasil) já era ilegal, e seus líderes, eles, sim,
comunistas, viviam na clandestinidade. A intenção do Golpe de 64 era impedir o
avanço comunista no Brasil e restaurar a democracia em dois anos. Não demorou
muito, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, candidato à reeleição, foi cassado
acusado de corrupção e colaborar com comunistas.
No primeiro teste eleitoral,
em 1965, não foram eleitos os candidatos dos militares em Minas Gerais e
Guanabara. Baixaram o AI-2 (Ato Institucional Número Dois). Partidos políticos
foram extintos. Poder Judiciário sofreu intervenção. Foram reabertos processos
de cassação. Carlos Lacerda, então aliado, dormiu conspirador e acordou
subversivo.
O novo partido da situação,
Arena, não engrenava. Iria ser derrotado nos Estados mais populosos. A paciência
dos militares se esgotou: o AI-3 foi baixado em 1966, determinando que eleição
de governadores seria indireta, executada por colégios eleitorais, e prefeitos
das capitais, estâncias e cidades de segurança nacional seriam nomeados.
O AI-4, de 1966, revogou
definitivamente a Constituição de 1946 e proclamou outra. O AI-5, de 1968,
suspendeu as garantias constitucionais da Constituição que tinham acabado de
promulgar. Despachos da presidência de República passaram a valer mais que
leis. Congresso, Assembleias Legislativas e Câmeras dos Vereadores foram
fechados por um ano. O Presidente podia decretar intervenção de Estados e
Municípios. Estavam proibidas atividades e manifestação de natureza política e
suspenso o direito de habeas corpus.
Finalmente, parte da
sociedade civil que apoiou o Golpe percebeu que militares não sabiam negociar
nem ser contrariados. Não têm intimidades com jogo político. Na essência, não
praticam a democracia: obedecem sem questionar um comando, uma hierarquia
imposta de cima para baixo.
Foram acusados de comunistas
os subversivos dom Elder Câmara, dom Pedro Casaldáliga e dom Paulo Evaristo
Arns, que se encontrara em 1964 em Três Rios com tropas do general Olimpio
Mourão Filho, deflagrador do Golpe, para oferecer assistência religiosa.
Nos tempos da ditadura, não
se discutiam os grandes investimentos. Militares construíram uma usina nuclear
com tecnologia obsoleta, numa região de difícil evacuação, e duas estradas
paralelas ao Rio Amazonas, a Transamazônica e a Perimetral Norte, que foram
tomadas pela floresta anos depois, devastando nações indígenas. Estatizaram
companhias telefônicas e de energia. Colaboraram para o desmantelamento da
malha ferroviária brasileira.
Editores de livros, como Ênio
da Silveira, foram presos. Jornalistas, como toda a redação do Pasquim, entre
eles, Paulo Francis, foram presos. Até um escritor no início simpático ao
Golpe, como Rubem Fonseca, foi censurado. Caetano Veloso e Gilberto Gil foram
presos e expulsos do Brasil. Raul Seixas foi convidado a se retirar, depois de
ironizar o regime com “sou a mosca que pousou na sua sopa”. Chico Buarque se
exilou. Teatros foram depredados, atores espancados. Parte da classe teatral,
como Zé Celso e Boal, foi embora. Glauber Rocha também se mandou.
O
contrabando e o jogo do bicho se associaram a agentes da repressão e se
fortaleceram. O crime organizado nasceu. A promiscuidade entre polícia e
bandido, tema do filme Lúcio
Flávio (Babenco), se consolidou na ditadura, que promoveu e
anistiou depois torturadores. O Comando Vermelho surgiu num presídio da
ditadura.
Ao terminar em março de 1985,
a ditadura deixou uma inflação que virou hiper (a acumulada de 1984 foi de
223,90%), uma moeda desvalorizada (um dólar valia 4.160 cruzeiros), uma dívida
externa que nos levou à moratória (FMI suspendeu em fevereiro de 1985 o crédito
ao Brasil, que não cumpria as metas depois de sete tentativas). Outra herança:
desmantelamento do ensino público.
O Brasil é governado há 20
anos por três subversivos acusados de comunistas pela ditadura: FHC,
ex-professor da USP cassado e exilado, Lula, sindicalista cassado e preso, e
Dilma, terrorista acusada de liderar uma organização clandestina que praticava
a luta armada. Líderes do antigo PCB fundaram o PPS. Todos estão na legalidade
e participam da vida democrática, como o PCB e seu racha, o PCdoB, parte da
base aliada.
O Brasil talvez tenha sido
vítima de uma das maiores farsas da História: nunca correu o risco de virar
comunista.