quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A idade, a violência, o fim da Boemia




Estávamos, num certo dia, como costumamos, de vez em quando fazer, e de dia, (que no popular quer dizer, durante o dia), a papear sobre diversos assuntos, quando se levantou a tese do fim da boemia.

A tese deixou-me embaraçado e pensativo, por que fim? O questionamento do meu interlocutor, pareceu-me mais uma preocupação de ordem particular, uma coisa bem pessoal; afinal ele, como nós outros daquela confraria, já atravessamos o cabo da boa esperança, o estreito de Ormuz (nada a ver com trânsito de grandes navios petroleiros que abastecem, principalmente, os mercados norte-americano e europeu), e outros obstáculos mais. Até que eu concordaria se, como já disse, levarmos simplestemente para o plano pessoal, o particular. Mas Boemia (é com maiúscula mesmo!), é, tal qual é a prostituição, no que respeita à profissão, a mais antiga e eterna parceira da manifestação humana da arte, do lazer, do entretenimento. Sem a boemia, não teriam existido os(as) literatos(as), os(as) grandes artistas gráficos(as), os músicos, os compositores - vou deixar de usar as (as), pois já deixei claro minha intenção de não discriminar as mulheres, afinal, para nós homens, que me desculpem os gays, é a chama do fogo ardente de uma paixão: mulher, paixão... e, com isto, está criada a boemia. Agora, querendo finalizar, ou sair deste devaneio, deste gostoso retrocesso cronológico, volto a dizer, Boemia é a mais antiga forma de manifestação cultural e de entretenimento do homem (e da mulher também, alguma questão?); afinal, desde que há inscrições ruprestres, alguma forma de fermentado e outras coisitas más, deve existir a Boemia.

Bem, voltemos ao nosso tempo e nossa realidade. Como havia entendido logo, logo, o nosso amigo quis referir-se a nós, à nossa contemporaneidade. Desta maneira, não há que se contestar coisa alguma, o fim da Boemia, para nós, é fato. Pô, também, meu Rei, a eternindade existe para o homem, enquanto instituição humana. Para nós, simples mortais, assim como quase tudo, (digo isto para não melindrar os que acreditam na vida depois da morte), tem fim; afinal, originamos de uma centelha, chegamos ao auge de uma grande e duradoura, embora finita, chama que, em determinado instante, entra num processo de dissipação, somente esta verdade já seria bastante para explicar a constatação do nosso amigo. Mas há fatores outros, bem contemporâneos para nos desestimular, nos desencorajar, para nos atemorizar, para nos afugentar, para afugentar o nosso espírito notívago (e aí mora a essência do questionamento do meu interlocutor: vida noturna, a noite é criança.). O ar provinciano, doméstico que respirávamos na Salvador dos 60-70¹s e, quem sabe, até os 80¹s, não mais existe. Transitávamos por aquelas vielas, becos, ladeiras, de todo o centro histórico, pela Cidade Baixa: Comércio, Bonfim, Ribeira, com a mais da desavergonhada tranquilidade; entrávamos e saíamos de bar em bar, como se extensão fosse de propriedade nossa: o feijão de Alaíde, o feijão de Vital, os inferninhos, o charriot (hoje, o plano inclinado), a Rua Chile, Avenida Sete (elas com configurações bem diferentes das de agora)...as barracas de praias - faziam-se devaneios até às altas horas- e elas foram derrubadas! (a troca de que?); a Barraca de Da. Sildefina, (atrás do C. Português); a Barraca de Nogueira, em Itapuã. Que é do Clube Português e seu baile a Yemanjá?; do velho Caneco? (Nos seus áureos tempos, somente servia chopp, (nada de cerveja em garrafa ou, pior, em lata) e bem gelado; bigode ao gosto do frequês); o feijão do Quatro Rodas (prá aqueles que não sabem, quatro rodas vem de um restaurante instalado numa velha kombi ou num caminhão); os bailes de carnavais nos clubes sociais (ao que parece somente subsistiram a Associação Atlética (parcialmente) e o Iate Clube (mas quem podia ou pode acessar aquela intransponível fortaleza da elite baiana - fiquemos somente neste termo. (As barracas de praia teriam invadido terreno da União, da Marinha, mas o Iate Clube, não!, assim como um portentoso hotel no Rio Vermelho, construído sobre as pedras do lindo mar da Bahia) e, o pior de tudo, a grande vilã, a violência urbana. Sim, dirão, mas sempre houve violência, sempre se roubou, sempre se matou, contudo a intensidade e frequência com que se assalta, se mata, se infringe; com que se banaliza o homicídio, a extinção de uma vida humana é incomparável com qualquer época anterior.

Amigo, a materialização da Boemia acabou para nós e, assim como, dizem, o Espírito é eterno, o nosso espírito boêmio ainda vive, vivinho da silva, dentro de nós.

Vivamos com ele na maneira e no tempo em que nos permitirem, sem que seja preciso pedir, com súplica, "regresso", sem precisar pedir "inscrição", como fez um boêmio em sua volta à boemia.